HAMAS E NETANYAHU: FACES DE UMA MOEDA FALSA


Não existem "notícias”, dizia Umberto Eco; "são criadas por jornalistas". A novidade é “a drástica queda nas vendas de mídia impressa", bem como "a saturação do mercado em que o jornalismo tradicional deve competir com mídias menos formais ou pouco profissionais”. Daí a gente deduzir (com Raul Seixas) que, como “não preciso ler jornais, mentir sozinho sou capaz”, o internauta resolveu criar notícias ele mesmo e assim o mau jornalismo ficou cada vez mais “democrático”.
"Sabe por que o Trump não dá a mínima para a imprensa? Porque o Twitter dele tem 15 milhões de seguidores. Se você juntar todas as organizações de mídia, juntas, não chega a dez. Quando ele solta um tweet, fala com mais gente do que a imprensa inteira americana consegue falar". (Miguel Nicolelis)
Não surpreende, no entanto que poucos dentre nós tenham consciência dessa transformação. Razão pela qual confiamos, ainda segundo Eco, na mídia eletrônica simplesmente porque “não sabemos diferenciar fontes competentes das que não são". Basta lembrar que as postagens dos sites sobre tramas fantasiosas "têm uma quantidade incrível de seguidores, desde internautas comuns até formadores de opinião, supostamente inteligentes, todos levando a internet muito a sério”.

A guerra Israel contra Gaza é um caso em questão, retratada por todas as mídias, informais e corporativas, mas que reflete extremamente mal as realidades da região e menos ainda as forças internas e externas que estão levando o Médio Oriente ao desastre. 

Só um exemplo: no dia 1º de dezembro uma pessoa imolou-se, ateando fogo a si mesma em plena luz do dia defronte ao consulado israelense em Atlanta. Não há fotos, não se sabe se a pessoa sobreviveu nem mesmo se era homem ou mulher. No Brasil, silêncio completo, mas o mais impressionante é que no Ocidente nenhum veículo de comunicação parece se importar com o assunto  nem mesmo com a censura!

A verdade é que na mídia corporativa em particular os jornalistas sabem que se desafiarem o consenso pró-estado colonial israelense, podem perder seus empregos ou mesmo comprometer suas carreiras para sempre.

Em total contraste está a narrativa padrão, que trata a guerra como se fosse um 'maná do céu' para o Likud, o partido político fundado em 1973 por Menachem Begin e Ariel Sharon, em aliança com várias organizações de direita. No poder desde 1996 e após o assassinato de Yitzhak Rabin, o partido tem contribuído para a expansão e a formação militar do Hamas, sigla em árabe para Movimento de Resistência Islâmica.

Na década de 1960, o Al Mujamma al Islami ('Centro Islâmico') estabeleceu a Irmandade Muçulmana (que rejeita toda influência ocidental) nos dois territórios palestinos, Gaza e Cisjordânia. De início eram apenas um conjunto de instituições de caridade, mas 1987 um grupo de ativistas organizou o Hamas, ainda só como “uma das alas da Irmandade Muçulmana na Palestina” - que tal como Likud é também “estruturada transnacionalmente”, inclusive no Brasil.

Um das primeira lideranças do Hamas era o sheik Ahmed Yassin, que da sua cadeiras de rodas tinha prestígio bastante para mudar a ênfase da prestação de serviços religiosos e sociais para o que hoje o Hamas é mais conhecido. Contou para isso com o decisivo apoio das autoridades israelenses, que cuidaram da formação de um Hamas militarizado, isso quando o algoz era Yasser Arafat e a sua Organização para a Libertação da Palestina.

Naqueles dias, os afiliados da Irmandade Muçulmana, já banida no Egito, operavam quase livremente em Gaza, ajudando Israel a reprimir os membros da OLP nos territórios ocupados. Nesse período, o sheik Yassin foi preso e condenado a 12 anos de prisão, mas não cumpriu sequer um ano, o que não surpreendeu ninguém.

Na mesma época, Netanyahu - o mais esperto dos colonos - começava a despontar como membro de uma nova geração de políticos israelenses formados por especialistas americanos em public relations e por seu antigo empregador, a Boston Consulting Group, uma das 'Big Three'  no gerenciamento de 'casos perdidos' e em distorcer narrativas, por exemplo, sobre 
transações escusas com recursos naturais na África e na montagem de ardilosos planos de saúde na Suécia. 

Já como representante de Israel na ONU e com fama de 'wise guy', Netanyahu assinou um manual de consultoria sobre “como as democracias podem derrotar os terroristas nacionais e internacionais”. Entrementes, em 1988, no decorrer da primeira intifada/insurreição palestina, o Hamas deixava definitivamente claro que recusava a existência de um 'Estado de colonos' e lançava a sua primeira campanha de ataques contra civis.

Quando Arafat e Rabin negociaram um processo de paz, Yassin estava de novo na cadeia, desta vez condenado à prisão perpétua. Contudo, assim que Netanyahu tornou-se primeiro-ministro o cadeirante foi libertado “por razões humanitárias”. Mais surpreendente ainda, depois de expulso para a Jordânia, Netanyahu autorizou que Yassin regressasse a Gaza, onde foi recebido como herói no final de 1997. Até ser assassinado em 2004, o sheik promoveu pelo menos uma nova onda de ataques suicidas contra israelenses.

Em 2007, após a vitória eleitoral do Hamas, que irritou o Ocidente assim como deixou possessa a Fatah, a filial palestina da Irmandade Muçulmana assumiu o poder político de Gaza e começou a administrar o enclave, levando tanto Israel como o Egito a impor a estratégia de bloqueio total que vigora até hoje.

Mas não foi tudo. Em março de 2019, quem sabe seguindo as lições do 'seu' livro, Netanyahu disse aos membros do Likud no Knesset, parlamento israelense, que “qualquer um que queira impedir o estabelecimento de um Estado palestiniano tem de apoiar o esforço e transferir dinheiro para o Hamas. Isto faz parte da nossa estratégia – isolar os palestinos em Gaza dos palestinos na Cisjordânia”.


No entanto, antes mesmo da pandemia os palestinos de Gaza retomaram a iniciativa e organizaram protestos generalizados exigindo que Israel acabasse com o bloqueio e resolvesse de vez o conflito com os palestinos. O que deixou o Likud desesperado para reverter o 'plano' de Netanyahu e adotar outro que incluísse uma 'solução final'. Como explica um jornal dos colonos, o Times of Israel:
"Nunca foi nossa posição massacrar os nossos inimigos. Preferimos vê-los mudar [de sua própria terra] para outros países onde se sentiriam mais confortáveis e seguros entre o seu próprio povo. Mesmo idioma. Mesma cultura. Mesma religião. As mesmas tradições culinárias".
Daí a preferência pela 'Doutrina Dahiya', delineada pelo antigo chefe das FDI, Gadi Eizenkot, na Guerra do Líbano de 2006 e na Guerra de Gaza de 2008-09. Sua premissa é a destruição das infraestruturas civis de “regimes hostis”.
“O que aconteceu no bairro de Dahiya, em Beirute, em 2006, acontecerá em todas as aldeias a partir das quais Israel for alvo de ataques… Aplicaremos força desproporcional e causaremos grandes danos e destruição. Do nosso ponto de vista, estas não são aldeias civis, mas bases militares… Isto não é só uma recomendação. É um plano. E foi aprovado”.
Do ponto de vista do direito internacional, "isto", a 'doutrina' nada mais é do que “terrorismo de Estado” e na opinião da ONU, um ataque “cuidadosamente planeado” “para punir, humilhar e aterrorizar a população civil”.

Assim, em julho, a Netanyahu não restou alternativa a não ser deixar claro que o seu governo não iria mais apoiar o Hamas, mas sim “esmagar” quaisquer ambições palestinas de criação de um Estado, usando para isso os princípios traçados por Eizenkot, que agora é ministro sem pasta no gabinete de guerra do antigo consultor do BCG em como derrotar o terrorismo.

Nos primeiros seis dias da guerra, Israel lançou seis mil bombas sobre Gaza – quase o mesmo número que em apenas um anos os EUA usaram no Afeganistão. Para entender melhor a intensidade de tais bombardeios basta saber que o Afeganistão é quase 1.800 maior que o enclave palestino sitiado.

Israel segue novas regras – não mais as de Netanyahu, mas as de Eizenkot - o novo messias? quantos mais?

 
“Não posso obrigar ninguém a concordar com minhas opiniões, mas posso ao menos obrigar a ter opinião" - Soren Kierkegaard

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