80 Anos do 'Dia D Brasileiro' no front da Segunda Guerra
Foi preciso o presidente italiano vir e nos dizer que
hoje, 16 de julho, se comemora uma das datas mais gloriosas da história do
Brasil, o nosso Dia D, do desembarque da Força Expedicionária Brasileira na
Itália, de onde partiria cedo demais (e somente porque os comandantes militares
estavam “cansados de guerra”, segundo Humberto Castello Branco) vitoriosa,
coberta da glória.
Conhecida por sua tenacidade e bravura, a FEB foi
respeitada pelos adversários, o exército mais poderoso do mundo. E pelos
aliados, que lamentaram profundamente ela ter sido desmobilizada ainda na
Itália pelos militares que sempre a odiaram, chamando-a de “exército de
Getúlio”.
Já para o General Harold Alexander, comandante supremo
das forças aliadas na Itália, “soldados tão bons como os brasileiros deveriam
ir para a Áustria e não para casa”. Não estava fugindo da guerra como Castello
et caterva e disse o que pensava ao Embaixador Vasco Leitão da Cunha, que, de
imediato, telegrafou ao Itamaraty insistindo que a “FEB devia ficar”. Em
resposta ouviu que “isso é somente cavação deles [aliados] para ganhar ouro”.
Reagiu argumentando que não reconhecíamos a contribuição dos nossos pracinhas e
ignorávamos que a razão de ser da FEB era “mais política que militar”.
O que ele queria dizer com “mais política”? De fato, no
Brasil já havia outros 25 mil pracinhas ansiosos para render a primeira divisão
e dar seguimento ao plano combinado: a transferência da Itália para a Áustria
tinha objetivos geopolíticos, como a derrubada do fascismo sobressalente em
Portugal e na África, além de acarretar também absorver a Guiana francesa,
vital para a segurança da Amazônia.[1] Do modo
como me contou em 2011 o saudoso Professor Hermínio Martins, da Universidade de
Oxford:
“Franklin Delano Roosevelt gostaria de ver os
impérios coloniais europeus destruídos, incluindo o império britânico, como o
disse várias vezes. Até queria que Hong Kong, depois da expulsão dos japoneses,
fosse devolvida à China, no caso a China nacionalista. Os ingleses ficaram
preocupados, intervieram na recuperação da cidade e não admitiram dela abrir
mão custasse o que custasse (se fosse devolvida à China, seria ocupada pelos
comunistas, e a história dos últimos 60 anos teria sido bem diferente). Quanto
aos franceses, o mesmo, portanto a questão da Guiana – FDR, aliás, chegou a
pensar na divisão da França em vários estados.[2] Quanto
ao império português, sem dúvida que os americanos pensaram que não se
aguentaria de um modo ou outro. Os relatórios dos cônsules americanos em Angola
e Moçambique faziam pensar que eram colônias decadentes, moralmente (o sexo
interracial os obcecava), e em todos os demais sentidos, e que o seu fim seria
uma questão que o tempo logo iria resolver.”
O mundo seria outro, se a FEB tivesse continuado. Nada
disso, porém, tirava o sono do alto comando e dos caciques políticos da época,
mais preocupados em deixar que “depois da luta e da vitória cada um tomasse o
caminho que quisesse”.[3]
Confirmou-se, portanto, o que havia previsto, anos antes, o general Góes
Monteiro, ao alertar que os oficiais superiores (e seus congregados) acabariam
comprometendo o “futuro da nação em proveito de interesses particularistas,
regionais e pessoais”.[4]
Interesses do tipo dos vários generais, suas famílias
e membros de gabinete que semanas atrás lotaram jatos da FAB com destino à
Itália e adjacências, com a desculpa de participar das comemorações do Dia da Vitória.
Feito para o qual o Exército pouco ou quase nada contribuiu e até hoje não
conhece nem reconhece.
Não apenas os militares, mas praticamente todos que ignoramos
que a FEB foi o resultado da luta dos brasileiros por sua liberdade e sua
dignidade, luta que principia em Canudos, nas ruas de São Paulo em 1917, no Rio
em 1919 e 1922, de novo São Paulo em 1924 e 1932, ainda outra vez com os
comunistas em 1935, culminando no desembarque num dia de hoje, depois de quase
1000 brasileiros mortos por submarinos alemães e italianos, dando ensejo a
enormes manifestações populares pela entrada do País na guerra ao lado dos
aliados.
O povo brasileiro exigiu e o povo brasileiro partiu
para a frente de combate. Não admira a Canção do Expedicionário iniciar perguntando:
“você sabe de onde eu venho?” E respondendo “venho do morro, do engenho, da
selva, do cafezal”. Nossos expedicionários vinham precisamente daí, pois a FEB
na sua imensa maioria era composta de voluntários, civis e não de militares,
que só foram do quartel até a praia (“patos n’água”, como os febianos os
chamavam).
Voluntários saídos do nosso povo mais carente, “gente
muito humilde, mas muito patriótica”, observava meu pai, que ao lado desses
pracinhas lutou e continuou lutando depois da guerra, abandonados que foram por
aqueles que sempre os odiaram, mas também pelos que sempre os ignoraram, como
nós que alegamos que os pracinhas “se meteram numa guerra que nada tinha a ver
conosco”.
Não era o que dizia meu pai, quando contava detalhes do
dia que a FEB capturou duas divisões inteiras, uma alemã e outra italiana,
quase intactas, frustrando os planos do inimigo de conseguir uma rendição
negociada.
Ele só se aborrecia quando lembrava os “pedidos de
baixa” dos militares com medo de ir para a frente de combate, alguns chegando
a se mutilar, decepando, por exemplo, dedos dos pés. Pior ainda foi o Exército
ter reintegrado boa parte desses desertores, alguns dos quais promovidos a
postos de comando e que depois participaram em golpes e ditaduras, caso dos
famigerados Newton Cruz e Otávio Aguiar de Medeiros.
O velho tenente lembrava de tudo,
inclusive os nomes completos de alguns “aleijadinhos”, como ele chamava os
desertores. Contei ao Professor Frank McCann, talvez o maior especialista de
história do nosso exército, que disse que eu podia acreditar no depoimento de
meu pai, até porque os militares brasileiros têm o mau hábito de se auto-anistiarem,
algo notório e repetido durante toda a República,[5]
período em que o poder armado (polícias e militares) usou e abusou da força
contra os cidadãos brasileiros.
Disse mais o professor: não há como demonstrar que meu
pai tivesse mentido ou exagerado, pois os relatórios dos anos de participação
brasileira na guerra, 1944 e 1945, que deveriam estar nos arquivos do Exército,
simplesmente sumiram! O curioso é que desde o século 19 a documentação está
intacta; só faltam os tais relatórios, que mesmo remexendo os arquivos
reservados do Estado-Maior, um oficial amigo de McCann não pôde encontrar.
Obrigado ao Presidente Sergio Mattarella por ter
lembrado de algo que não sabemos e até temos raiva de quem sabe. Fica, à guisa
de lembrança, uma foto tirada no USS General Mann, navio norte-americano, dias
antes do desembarque, com meu pai no comando de seu pelotão formado pelo que
existe de melhor na nossa sociedade, a nossa gente que veio do morro, do
engenho, da selva e do cafezal.
[1] Frank D. McCann, Brazil and World War II: the
forgotten ally. Estudios
interdisciplinares de America Latina y El Caribe, 6, 2, 1999: 36-70.
[2] Charles
L. Robertson, When Roosevelt planned to govern France. University of Massachusetts Press, 2011.
[3] Julio
Prestes de Albuquerque (inimigo político de Vargas) a Altino Arantes, 2 set.
1942. Pedro Calmon, História do Brasil (vol. V). José Olympio, 1959:
2262.
[4] “Memória nº 3” (para o governo),
quartel-general, Resende, 9 ago. 1932.
[5] Frank D. McCann, Soldados
da pátria. História do exército brasileiro, 1889-1937. Companhia das
Letras, 2004.
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