Lembranças do Dia das Mães
O MAL NÃO É UMA ABSTRAÇÃO, mas algo bem concreto. Tem cara, nome, RG e endereço. Suas vítimas devem ser respeitadas e ter a oportunidade de relatar, numa corte de justiça, o que passaram. E devem fazê-lo na presença dos algozes e das famílias destes. Mesmo que esses homicidas, torturadores, sequestradores tenham sido anistiados.
O Direito também é responsável, na medida em que pretere e manipula as vítimas - conforme afirma Sérgio Moro, ícone da magistratura brasileira: é melhor “não ser vítima de um crime, pois se for o problema é seu”.
Ainda outro dia, no Congresso Nacional, um energúmeno fez homenagem a um assassino em série, fardado, responsável por 47 sequestros e homicídios, cujas vítimas incluíram:
Ernesto Carlos Dias do Nascimento. Tinha dois anos e três meses quando foi considerado terrorista, “elemento menor subversivo” banido do país por decreto presidencial. Preso em 18 de maio de 1970, em São Paulo, com sua mãe, Jovelina Tonello do Nascimento. O pai, Manoel Dias do Nascimento, militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), organização comandada por Carlos Lamarca, havia sido preso horas antes.
“Levaram-me diversas vezes às sessões de tortura para ver meu pai preso no pau de arara. Para o fazerem falar, simulavam me torturar, com uma corda, na sala ao lado, separados apenas por um biombo”.
O menino de dois anos dizia: “Não pode bater no papai. Não pode”.
E batiam.
Libertado quase um mês depois, passou os primeiros anos com pavor de policiais de farda e grupos com mais de quatro pessoas. Entrava em pânico, escondia-se debaixo da cama ou dentro do armário, mordia quem se aproximava e urinava nas calças.
Ernesto foi uma criança com pesadelos recorrentes. O mais comum era com um asno, uma corda e uma agulha.
“O asno usava um boné militar, a agulha tinha olhos arregalados e uma risada aguda sarcástica e corria atrás de mim, eu apavorado tentava fugir. O asno me cercava, me dava coices ou chutava coisas sobre mim. A corda parecia boazinha, disfarçada de linha se estendia até mim, mas quando eu a segurava ela machucava minhas mãos e me deixava cair em um abismo.”
João Carlos Schmidt de Almeida Grabois estava na barriga da mãe, Crimeia, quando esta levou choques elétricos, foi espancada em diversas partes do corpo e agredida a socos no rosto. Enquanto era assim brutalizada, os agentes da repressão ameaçavam sequestrar seu bebê tão logo nascesse. Quando os carcereiros pegavam as chaves para abrir a porta da cela e levá-la à sala de tortura, o bebê começou a soluçar dentro da barriga. Joca nasceu na prisão e, anos depois, já crescido, quando ouvia o barulho de chaves, voltava a soluçar. A marca da ditadura nele é um soluço.
Perto da hora do parto, em vez de levarem Crimeia para a enfermaria, a colocaram numa cela cheia de baratas. Como o líquido amniótico escorria pelas pernas, os insetos a atacavam em bandos. Isso durou quase um dia inteiro. Só no fim da tarde, com outros presos gritando junto com ela, a levaram para o hospital. O obstetra disse que, como não estava de plantão, só faria a cesariana no dia seguinte. Crimeia alertou que seu filho poderia morrer. O médico respondeu: “É melhor! Um comunista a menos”. O pai de Joca foi assassinado pelo regime militar meses depois de o menino nascer. A primeira vez que ele viu o rosto do pai foi aos 18 anos, numa foto nos arquivos do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) de São Paulo.
Carlos Alexandre Azevedo. Não suportou a lembrança. Talvez porque ele nunca pôde transformá-la em memória. Era nele algo vivo e sem palavras, um silêncio que não conseguia se dizer. E um silêncio que não consegue se dizer é um pavor. Ele tinha um ano e oito meses quando sua casa foi invadida por policiais do DOPS/SP, em janeiro de 1974. Como começou a chorar, os policiais deram-lhe um soco na boca que de imediato sangrou. Passou mais de 15 horas em poder da repressão, nas mãos de funcionários do Estado, enquanto lá fora gente demais vivia suas vidas fingindo que nada acontecia. Seus pais ouviram relatos de que nesse período o menino, pouco mais que um bebê, teria levado choques elétricos. Cacá se matou aos 40 anos, em 2013. Seu pai diria: “Ele ficou apavorado. E esse pavor tomou conta dele. Entendo que a morte dele foi o limite da angústia”.
Ângela Telma de Oliveira Lucena. Tinha três anos e meio quando executaram o pai diante dela. Ângela diz:
“Eu lembro como ele estava vestido. Eu lembro exatamente como tudo se desenrolou naquele dia. Eu estava no colo da minha mãe, e quando fui crescendo, durante muitos anos ficava pensando se tinha sonhado aquilo ou se era realmente um fato que tinha ocorrido. Eu vivia um conflito entre apagar, riscar aquilo da minha vida, mas, ao mesmo tempo, sabia que, se fizesse isso, estaria riscando a história da minha família. (...) As pessoas sempre colocam em dúvida se eu realmente consigo lembrar da morte do meu pai. (...) Eu gostaria muito de poder apagar esse momento do assassinato do meu pai da minha vida. Mas eu não posso, eu não quero e eu não consigo. Porque a única memória que tenho do meu pai é exatamente o momento da sua morte”.
Paulo Fonteles Filho, cujo parto da mãe foi uma tortura iniciada por policiais, completada pelo médico. Aos cinco meses de gestação, Hecilda era espancada com socos e pontapés, aos gritos de: “Filho dessa raça não deve nascer”. Era mantida acordada a noite inteira com uma luz forte no rosto, no que se chamava de “tortura dos refletores”. Depois, sentada numa cadeira, os fios subiam pelas pernas e eram amarrados nos seios, causando calor, frio, asfixia. Mais tarde, foi colocada numa cela cheia de baratas. Ela já não conseguia ficar nem em pé nem sentada. Como não tinha colchão, deitou-se no chão.
As baratas começaram a roê-la. Ela só conseguiu tirar o sutiã e tapar a boca e os ouvidos. Levaram-na então para o Hospital da Guarnição do Exército, em Brasília. Ela lembra da irritação extrema do médico, que induziu o parto e fez o corte sem anestesia. Hecilda não chorou. Ela conta no livro Luta, Substantivo Feminino: Mulheres Torturadas, desaparecidas e mortas na resistência à ditadura, publicado pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos: “Depois disso ficavam dizendo que eu era fria, sem emoção, sem sentimentos. Todos queriam ver quem era a ‘fera’ que estava ali”. Assim é contado o nascimento de Paulo, assim é como ele começa a se contar. Nascido entre feras – nenhuma delas a sua mãe. Nascido entre humanos, os mais brutais dentre todas as feras.
Toda vez que se dá oportunidade para o fanatismo ditar as regras do comportamento estas barbaridades acontecem. E o fanatismo não tem regras. Ultrapassa o senso comum. É aonde se perde a civilidade, a bondade, o respeito.
ResponderExcluirNão importa onde ele aflora: no regime militar, no fanático religioso, no fanático antireligioso, no nazista, no anticomunista, no comunista fervoroso, não importa. É onde o ser humano mostra sua face mais perversa.
Fosse essa grávida uma anticomunista fervorosa num regime totalitário comunista talvez não tivesse melhor sorte. Ou não?
Nada justifica estas atrocidades.
Que perigo imenso ela deveria representar para a ditadura militar brasileira... Grávida, jovem, desarmada.
Tenho medo. Mais que medo, pavor, dos fanáticos. Eles encontram o respaldo necessário para seus atos nas suas convicções. E entre os seus, a aprovação.
Constroem muralhas, aprofundam calabouços, prendem e arrebentam.
Será que era necessária tanta violência estúpida com um bando de estudantes quase desarmados frente a um exército inteiro, com apoio estrangeiro? No que iria dar? Em nada! Como não deu.
A ditadura caiu de madura. Quando as condições já não lhe eram favoráveis, em toda a América Latina.
Quantas torturas inúteis, quanto fanatismo estúpido, quantas mortes desnecessárias..
Qualquer que seja o motivo : contra, a favor, muito pelo contrário. Nada justifica o fanatismo, que embaça a visão e embota a inteligência.