POLÍCIA E SOCIEDADE QUE SE MERECEM

Confio que os jovens possam perseguir e consertar o estrago que os mais velhos fizeram. Como e se forem capazes de pôr isso em prática, dependerá da imaginação e da determinação deles. Para que se deem uma oportunidade, os jovens precisam resistir às pressões da fragmentação e recuperar a consciência da responsabilidade compartilhada para o futuro do planeta e seus habitantes. Os jovens precisam trocar o mundo virtual pelo real (Zygmunt Bauman).


“Os jovens que hoje lutam contra uma sociedade que cotidianamente revela sua desigualdade, injustiça, crueldade e generalizada destrutibilidade, não precisam de padrinho nem de figuras paternas. O patrimônio dessa sociedade é o fascismo, que apesar de derrotado militarmente, ainda possui enorme potencial de repetição. Do mesmo modo que o racismo, o sexismo, a insegurança generalizada, a poluição ambiental, a degradação da educação e do trabalho, e tantas outras desgraças” (Herbert Marcuse, 1976)

Os jovens que hoje no Brasil ocupam escolas defendendo ensino público gratuito e de qualidade, são herdeiros legítimos das lutas pela participação do povo na resolução dos problemas que lhe dizem respeito. Descendem em linha direta dos jovens que em 2013 e 2014 promoveram massivos protestos de rua contra a corrupção generalizada e a má-qualidade dos serviços públicos. Serviços que, segundo eles, deveriam ter um “padrão FIFA” não apenas no futebol, mas também nos transportes, na educação e na saúde.
Nessa época, enquanto a sociedade aguardava em êxtase a realização da Copa do Mundo de 2014, os jovens saíram às ruas, com coragem e denodo, contra os abusos, as absurdas isenções de impostos e os gastos excessivos para construir estádios de futebol e outras estruturas. Exigiam, nesse sentido, melhor e mais democrática gestão dos gastos do governo, assim como serviços públicos mais eficientes.


Foram brutalmente reprimidos pela infame Polícia Militar, corporação “com vontade de matar” (coronel Erasmo Dias, ex-secretário de segurança pública), responsável pelo assassinato de milhares de pessoas, a maioria inocente, cuja extinção já foi solicitada ao governo brasileiro em 2012 pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas. Numa ocasião, a PM de São Paulo agrediu manifestantes pacíficos com cassetetes e balas de borracha, chegando a esguichar spray de pimenta diretamente nos olhos de um homem ferido e rendido. “Um ato típico de tortura”, denunciou o defensor público Carlos Weis, que apesar de flagrado por fotógrafos não acarretou na identificação e punição dos policiais responsáveis.
Bem ao contrário. Essa e outras barbaridades – por exemplo, o fotógrafo Sérgio Silva foi cegado com uma bala de borracha e a jornalista Giuliana Vallone ferida no rosto com o mesmo artefato, e ninguém punido – foram plenamente justificadas por Geraldo Alckmin, governador do Estado de São Paulo, de vez que assim “a polícia evitou situações mais graves, pois estávamos na abertura da Copa, 60.000 pessoas indo para o estádio, muita gente na rua” (El País, 13 jun. 2014). Gente que, sem ilusão com o prometido “legado da Copa” para a melhoria dos serviços públicos, em sua grande maioria não concordava com as manifestações (Tribuna do Norte, 1 jun. 2014).


Não foi diferente a reação das celebridades brasileiras. O ex-jogador de futebol Pelé, por exemplo, chegou a afirmar, 10 meses antes da Copa, que, “como não iria dar tempo para verificar o que foi gasto, melhor seria aproveitar para arrecadar com turismo e compensar o dinheiro que foi roubado”. Os brasileiros deveriam, portanto, “deixar de lado as manifestações e apoiar a seleção”. O mesmo no que diz respeito a outro astro do futebol brasileiro, Ronaldo, para quem "com hospitais não se faz Copa do Mundo".
Enquanto isso, para um influente formador de opinião, como “a praça não é de ninguém porque é de todos”, não se deve conferir a “a grupos de pressão”, isto é, aos jovens, “o direito de impor ao conjunto da sociedade a sua agenda”, razão pela qual, a sociedade “sai necessariamente perdendo com esse tipo de expressão do descontentamento” (Veja, 27 jan. 2014).


Consequentemente, para as autoridades e a própria opinião pública, com a desculpa da Copa, pouco importava o governo não saber o que fazer com os protestos, e deixar que a polícia “resolvesse o problema” do seu jeito de sempre: sem negociar e violando direitos básicos à livre circulação, à manifestação e expressão, inaugurando no Brasil um período de exceção. Um Estado Policial, em que as chamadas forças de segurança o tempo todo atropelam a Constituição e investem contra a sua própria razão de ser, que seria proteger o cidadão e garantir o livre exercício de seus direitos. Sem incluir a remota possibilidade das polícias brasileiras adotarem uma perspectiva moderna de segurança, em que (1) o objetivo não é “vencer” nem “punir”, mas viabilizar o controle dos conflitos pela sociedade; (2) não existem “inimigos” a eliminar, mas conflitos que colocam em risco o bem-estar da população e o desenvolvimento da sociedade; (3) o mínimo adequado de violência deve ser empregado e os resultados maximizados tendo como perspectiva a paz social; e (4) as intervenções são realizadas usando o máximo de cautela e extrema paciência.


Assim sendo, na luta contra a corrupção em 2013 e 2014 os estudantes brasileiros ficaram sozinhos, a não ser pelo apoio de segmentos tão discriminados quanto a juventude: professores, pessoas sem-teto, indígenas e trabalhadores autônomos. Todos engajados nos protestos contra um torneio de triste memória, depois da fatídica derrota do Brasil, por 7 a 1, diante da Alemanha. 
Foi somente aí que, procurando a quem castigar por conta de suas próprias frustrações, toda a sociedade se envolveu com ódio em uma espúria “luta contra a corrupção” que desestabilizou todas as instituições do país, sem ferir privilégios e excluindo, até mesmo criminalizando, as “expressões de descontentamento” dos jovens. 


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